domingo, 18 de julho de 2010

saúde II

A matéria a seguir e um alerta consciente dos danos que podem causar a divulgação exagerada dos resultados das pesquisas.


Um basta aos charlatães das células-tronco



Jornal O Globo – 16/07/2010 - Opinião - Página 7

LYGIA DA VEIGA PEREIRA



De todas as perguntas que respondo sobre célulastronco (CTs), as mais delicadas são as de pacientes e familiares querendo saber se já existe algum tratamento para sua doença — são dezenas delas todos os meses.



A pergunta é absolutamente natural e justificada — afinal, com sua capacidade de regenerar órgãos e tecidos, as CTs são a grande promessa terapêutica do século XXI, e nos últimos dez anos cientistas do mundo todo trabalham para transformar esta promessa em realidade. Porém, em geral a pergunta é baseada na percepção de que as CTs já fazem parte de uma realidade médica, tratando desde infarto e diabetes até gripe suína.



Mas não fazem? Não. Até hoje, o único tratamento com CTs consolidado é o transplante de medula óssea ou de sangue do cordão umbilical, utilizado principalmente no tratamento de leucemias e outras doenças do sangue. Todas as outras aplicações das CTs, seja em infarto ou lesão de medula, são ainda experimentais.



É verdade que em várias doenças já passamos dos testes em animais para testes em seres humanos, porém ainda são testes em andamento.



Entre a enorme expectativa dos pacientes e a forma por vezes sensacionalista de as CTs serem apresentadas, não é de se admirar que muita gente acredite que elas já estejam incorporadas à medicina de consultório. Infelizmente, isso levou ao surgimento em vários países de um comércio de tratamentos milagrosos com CTs para doenças hoje incuráveis.



A comunidade científica repudia veementemente essas práticas, não fundamentadas experimentalmente, aéticas, e que submetem os pacientes a riscos desnecessários.



Algumas famílias argumentam que não têm nada a perder, mas se enganam.



No ano passado, o resultado de um desses tratamentos misteriosos com CTs oferecidos em uma clínica na Rússia foi relatado: o desenvolvimento de múltiplos tumores no cérebro de um menino que buscava tratamento para sua doença neurodegenerativa. Atenção: por enquanto tratamentos com CTs só podem ser realizados em instituições de pesquisa, com a aprovação dos respectivos comitês de ética, e sem nenhum custo financeiro para os pacientes.



Entendemos e somos absolutamente solidários com o sofrimento e a ansiedade dos pacientes e familiares que aguardam os tão prometidos tratamentos com CTs. Porém, precisamos primeiro averiguar se essas terapias são seguras, e depois se são de fato eficazes para aquelas doenças antes de torná-las disponíveis para a população.



Para formalizar o repúdio e combater os “mercadores de CTs”, a Sociedade Internacional para Pesquisa em CTs (ISSCR — www.isscr.org ), que reúne os principais cientistas de CTs do mundo, lançou um guia para pessoas interessadas nesses tratamentos (“A closer look at stem cell treatments”, disponível em http://www.closerlookatstemcells.org ).



Nele são discutidos como funciona uma pesquisa clínica, e o que perguntar sobre teóricos tratamentos com CTs. E ainda é possível submeter uma clínica de CTs a análise pela ISSCR, que verificará se a mesma oferece tratamento com base científica comprovada, e se atende a normas éticas e sanitárias.



No Brasil, a Rede Nacional de Terapia Celular está traduzindo o guia para o português para atender também a nossa população.



Existe uma linha tênue entre a ousadia e a irresponsabilidade, mas pesquisadores de verdade sabem muito bem respeitar esse limite.



Apesar da urgência dos pacientes, o desenvolvimento científico sério deve ser feito de forma absolutamente responsável para que um dia possamos de fato transformar em realidade



LYGIA DA VEIGA PEREIRA é professora e chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo.